Por Nicholas Maciel Merlone
A cidadania se encontra firmada logo
no artigo 1º, inciso II, da Constituição Federal de 1988. Mas como concretizar
este fundamento da República brasileira? Por quais instrumentos jurídicos?
Enfim, como tirá-lo do papel? O evento O Direito e as Políticas Públicas no
Brasil, organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Direito Político e
Econômico, realizado na Universidade Presbiteriana Mackenzie, nos dias 17 e 18
de março, procurou responder a essas perguntas, levantadas de início pelo
palestrante que inaugurou os trabalhos noturnos do primeiro dia, o coordenador
e professor do programa de pós-graduação em direito, Gianpaolo Poggio Smanio.
Veremos neste estudo, mais especificamente, o papel das políticas públicas com
o intuito de inclusão social dos deficientes (Relacionado ao tema, confira:
GARCIA, Rebeca. A inclusão da pessoa com deficiência: aplicabilidade das ações afirmativas
para a extinção de barreiras histórico-culturais. In: SMANIO, Gianpaolo;
e BERTOLIN, Patrícia (Orgs.). O Direito e as Políticas Públicas no Brasil. São Paulo: Atlas,
2013.).
Maria Paula Dallari Bucci, professora da pós-graduação em direito do
Mackenzie, autora, dentre outras obras, da pesquisa Fundamentos para Teoria
Jurídica das Políticas Públicas, de 2013, fruto de sua defesa de Livre-Docência
em Direito pela USP, realizou a abertura do evento pela manhã no primeiro dia,
destacando, dentre outros pontos, a importância de encarar o Direito como
Ciência Social Aplicada, de modo que as políticas públicas sirvam como
instrumentos de efetivação da cidadania.
A palestrante ressaltou a relevância de enxergar o Direito com uma
abordagem abrangente em relação a outros campos do conhecimento, devendo-se,
assim, estudar outras áreas, como Processo Civil, Penal e Constitucional. Nas
aulas do mestrado, lembro ainda de termos estudado noções de outras disciplinas
não jurídicas, como administração pública, o que, com certeza, contribui para a
compreensão das políticas públicas.
Importa salientar o que a palestrante frisou sobre o papel criador do
Direito. Ou seja, o papel que lhe cabe de influir como a lei deve ser feita,
atuando antes da lei, o que demanda criatividade e originalidade por parte de
seus operadores. Porém, por outro lado, afirma que no contexto faltam bons
instrumentos jurídicos para tal desiderato.
Gianpaolo Smanio, por sua vez, destacou a função de intermediação de
conflitos da Constituição da República Federativa Brasileira de 1988. Numa
realidade plural onde vivemos, onde existem questionamentos e onde há
inconformismo, o Texto Magno assume o papel de vetor de transformação,
precisando ser efetivamente instrumentalizado na prática.
No primeiro dia à noite, a deputada federal, Mara Gabrilli, discorreu
sobre os direitos dos deficientes, bem como de sua inclusão social. Dentre
casos práticos e apontamentos sobre o projeto da Lei Brasileira de Inclusão,
que tramita há 13 anos no Legislativo, e traz importantes inovações para a
realidade dos deficientes.
A deputada abordou ainda a dificuldade de uma realidade: a exclusão das
pessoas com deficiência do mercado de trabalho. A Lei Federal n. 8.213/91, em
seu artigo 93 (lei de cotas), foi criada mais de vinte anos atrás, estipulando
a contratação de 2 a 5% de pessoas com deficiência pelas empresas com mais de
100 empregados. Sua efetiva aplicação sofre resistências, por causa do
preconceito existente atualmente (Sobre o assunto, confira: Senador Paulo Paim.
Pessoas com deficiência: sim à lei de cotas. Jornal do Brasil. 17/03/2014).
Além disso, Grabrilli frisou muito a questão da acessibilidade dos
deficientes, destacando que não se trata de uma matéria obrigatória nas
faculdades de arquitetura e engenharia do país, e exemplificou que, em alguns
casos, os deficientes mal conseguem sair de casa porque a via pública é
inadequada logo na porta de sua residência. Igualmente, levantou os casos de
dificuldade de acesso aos transportes públicos pelos deficientes, que não raro
enfrentam problemas para conseguir um ônibus nas cidades.
Desse modo, em se tratando de acessibilidade, segundo Alessandro Feijó,
ao abordar esse direito, para se “ter e ser uma cidade inclusiva, um ambiente
urbano inclusivo, passa necessariamente pela ideia de uma cidade e para todos,
independentemente do tipo de deficiência, exigindo uma nova concepção de viver
socialmente, sem segregação, sem barreiras. Por isso, a compreensão do que seja
acessibilidade auxiliará na concretização dos direitos a ela vinculados,
alterando o pensamento de que acessibilidade é simplesmente a construção de
rampas. O direito constitucional de acessibilidade é, antes de tudo, a
materialização do direito constitucional de igualdade. Este deve ser total e
atingir a todos os cidadãos.” (cf. Alessandro Feijó. A acessibilidade como
instrumento da sustentabilidade nas cidades inclusivas. Revista Brasileira de
Direito Municipal - RBDM. Ano 14. N. 50. outubro / dezembro 2013. Belo
Horizonte: Fórum, 2005. pp. 17-18).
E conclui: “adverte-se que acessibilidade não se resume ao direito
locomoção independente, apesar de assim transparecer, mas também envolve o
direito à informação. Portanto, permitir à pessoa com deficiência exercer
plenamente sua cidadania implica fazer cumprir os direitos fundamentais já
reconhecidos. O espaço concreto do município é o cenário onde se desenvolve
esta ação. Programar e aplicar medidas de acessibilidade, no espaço urbano,
democratizando seu uso possibilita que os ambientes se tornem disponíveis a
todos”. (Ibid., p. 21)
Nesse panorama, é preciso criar políticas públicas de inclusão para os
deficientes, como no que tange à acessibilidade. Torná-la uma disciplina
obrigatória nos cursos de arquitetura e engenharia talvez fosse um começo,
assim como o estudo de doenças raras pelas faculdades de medicina, já que
afligem parte da população e parece não haver interesse em estudá-las.
Outras medidas devem ser implementadas, não se limitando à construção de
rampas como o autor frisa. É preciso se mudar uma cultura arraigada na
sociedade do preconceito e da intolerância, alterando as estruturas sociais,
para que a população possa conviver em harmonia, com respeito ao próximo. Nesse
sentido, políticas públicas de conscientização são necessárias, bem como na
educação de crianças, jovens e adultos. O ensino de música, por exemplo, pode
ter resultados fantásticos, transformando a percepção de mundo dos jovens e
dando-lhes uma oportunidade, haja vista as orquestras de músicas clássicas que
são promovidas em comunidades carentes.
Com redação dada pela Emenda Constitucional nº 65, de 2010, o art. 227,
II, da CF/88. dispõe que deve ocorrer a criação de programas de
prevenção e atendimento especializado para as pessoas portadoras de deficiência
física, sensorial ou mental, bem como de integração social do adolescente e do
jovem portador de deficiência, mediante o treinamento para o trabalho e a
convivência, e a facilitação do acesso aos bens e serviços coletivos, com a
eliminação de obstáculos arquitetônicos e de todas as formas de discriminação.
No contexto, destaca-se a função institucional do Ministério Público de
zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância
pública aos direitos assegurados nesta Constituição, promovendo as medidas
necessárias a sua garantia, nos termos do art. 129, II, da CF/88, de onde se
extrai a capacidade fiscalizatória do Ministério Público com relação aos
direitos dos deficientes a serem implementados pelo Poder Público.
Antes de finalizar, oportuno citar Norberto Bobbio. O autor argumenta
que, atualmente, a meta que devemos buscar é a efetivação dos direitos
existentes, justamente com base nos seus fundamentos. Assim, o século XX foi a
época de reconhecimento desses direitos, enquanto o século XXI trata-se do
tempo de concretizá-los na realidade. (BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. 4ª
reimpressão, Trad. Carlos Nelson Coutinho,. Rio de Janeiro: Campus, 1992. p.
24).
Portanto, partindo da cidadania, enquanto fundamento da República
brasileira, uma forma de instrumentalizá-la, no caso do direito à inclusão dos
deficientes, ocorre por meio das políticas públicas. No contexto, o Poder
Público e a sociedade devem atuar conjuntamente, perseguindo o bem comum, isto
é, a convivência harmoniosa da população brasileira, sem preconceitos e
discriminações, mas sempre procurando compreender o próximo.
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Publicado originalmente no Última Instância (link).
23 de março de 2014.
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