"SOB A PROTEÇÃO DE DEUS"
Por Nicholas Maciel Merlone
Desde tempos remotos, as religiões são fontes de amparo e
conforto espiritual para seus seguidores e praticantes. Da mesma forma, é
sabido não ser de hoje que ocorrem conflitos entre pessoas de diferentes
crenças e religiões que perduram ao longo dos anos e parecem não ter fim. Caso
emblemático se evidencia entre judeus e muçulmanos no Oriente Médio. No Brasil,
alguns dados merecem destaque.
Segundo o Novo Mapa das Religiões,
coordenado pelo pesquisador Marcelo Néri, em 2003, 73,8% dos brasileiros se
diziam católicos, enquanto, em 2009, a cifra caiu para 68,4%. Nesse período, os
evangélicos subiram de 17,9% para 20,2%. Ademais, cresceram as pessoas que
alegam não ter religião (ateus e agnósticos): de 5,1% para 6,7%.
Conforme pesquisa da FGV, onde os
programas sociais do governo deram certo, o trânsito religioso estagnou. Assim,
ficaria claro um vínculo entre o trânsito religioso, ou instabilidade
religiosa, que passaria pelo cultural e pelo familiar, e a situação de instabilidade
sócioeconômica das pessoas.
Todavia, independentemente de a mudança
religiosa ocorrer pelos motivos mencionados, por outros, como ampla utilização
da mídia televisiva e eletrônica, ou, talvez, apenas por uma questão de
identificação com os ritos e pregações, o direito à crença em uma religião, bem
como sua prática são assegurados por nossa Constituição da República, como
prescreve o artigo 5º, inciso VI: "é inviolável a liberdade de consciência
e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e
garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas
liturgias".
Isso não significa, porém, como sabemos,
que o direito de não se crer em um ente superior; de se ser cético quanto à
crença em uma entidade e, por fim, o direito de se ter tão-somente fé,
desvinculadamente de religião, não devam ser respeitados. Pelo contrário,
merecem respeito e compreensão, assim como qualquer forma de manifestação
religiosa.
Atritos existem e, com certeza, sempre
existirão, mas queremos crer que, dia após dia, as diferenças sejam
minimizadas, para buscarmos uma convivência mais harmoniosa, com menos
intolerâncias e preconceitos. No contexto, cumpre ressaltar o artigo 104,
inciso II, do Código Civil de 2002, no que tange aos requisitos de validade
quanto ao objeto do negócio jurídico, quais sejam: a) lícito, b) possível, c)
determinado ou determinável.
Então, vejamos. Numa interpretação
não-literal do texto, mais abrangente, deve-se buscar não a intenção estática
da lei ou do legislador, mas a interpretação do conteúdo normativo de acordo
com a realidade atual e mutável, de modo a acompanhar as constantes e
importantes evoluções sociais, para não se estagnar no tempo e trazer prejuízos
para o próprio detentor do poder, o povo.
Nesse momento, lembrando que a arte nos
possibilita compreender melhor a realidade em que vivemos, permita-nos remeter
ao filme Meia-noite em Paris, de Woody Allen. Na película, a realidade se
confunde com a ficção, de modo que um escritor norte-americano, encantado com a
cidade européia e entediado com o estilo de vida de seu país, passa a conviver
na roda noturna de intelectuais, como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald,
Picasso, Dalí, entre outros, apaixonando-se por uma bela jovem parisiense.
Pois bem, a amigável situação descrita
nos possibilita concluir que desenvolveram laços de convivência, de modo que
até o "forasteiro", ao se enturmar, passou a integrar o grupo, todos
unidos por afinidades em comum. Em certa medida, podemos dizer que a noite, a
boemia e as artes se tornaram dogmas de sua religião, de modo que, dia após
dia, sempre à meia-noite, encontravam-se e partiam para as festas.
No enredo, em certo momento, o jovem
americano solicita a Hemingway que leia o manuscrito de sua obra. O
autor-caçador é categórico ao impor uma condição – que sua revisora leia antes.
Firmam, assim, um contrato tácito, com uma cláusula de condição suspensiva.
Pergunta-se, então, se na ilustração
exposta o negócio jurídico celebrado é válido, considerando que o jovem e o
renomado escritor pertencem a épocas distintas. Haveria uma limitação, uma
barreira temporal mesmo dentro na história, que, de fato, impediria a
celebração. Todavia, é superada pelo criativo enredo e pelos engenhos da arte
cinematográfica.
Desse modo, podemos afirmar que, no
caso, por uma interpetração não-literal, mais abrangente, o requisito de
validade do negócio jurídico quanto ao objeto, qual seja - b) possível - é
perfeitamente confirmado. O contrato celebrado é válido, assim como toda a
história.
Voltando, porém, à realidade, cabe
lembrar que somos um Estado laico, de modo que o preâmbulo da Constituição
Federal de 1988 é claro, contudo, ao enunciar, nos termos seguintes:
"Nós,
representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte
para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e
comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das
controvérsias, promulgamos, sob
a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO
BRASIL."
A expressão em destaque - "sob a
proteção de Deus" -, no entanto, não tem força normativa. É antes um
norte, um guia para o povo e para os operadores do direito. Assim, somos um
Estado laico, sem religião oficial, sob orientação religiosa com força não
cogente.
Nesse sentido, cabe recordar notícia do
STF do dia 15 agosto de 2002, intitulada "Pleno mantém supressão da frase
‘sob a proteção de Deus’ na Constituição do Acre". O texto informa que o
Plenário do Supremo Tribunal Federal julgou improcedente, por unanimidade, Ação
Direta de Inconstitucionalidade (Adin 2076) do Partido Social Liberal (PSL),
contra a Assembleia Legislativa do Acre, por omissão no preâmbulo da
Constituição daquele estado das palavras “sob a proteção de Deus”.
Entre os argumentos que fundamentaram a
decisão, o relator do caso, ministro Carlos Velloso, explicitou que o preâmbulo
constitucional não cria direitos e deveres, não tendo força normativa e
refletindo, assim, apenas a posição ideológica do constituinte. “O preâmbulo,
portanto, não contém norma jurídica”, afirmou o ministro.
Finalmente, já diziam que a arte imita a
realidade e que, além disso, devemos saber que sem a primeira não nos inserimos
na segunda, sendo assim, indissociáveis. Seria preciso também perseguir nossa
coexistência religiosa diariamente, sempre na tentativa de efetivá-la. E isso
se inicia em pequenos atos isolados e personalíssimos, como ao nos
conscientizarmos intimamente do real valor do direito à liberdade de crença e
religião, protegidos constitucionalmente, que cada um merece ter respeitado,
sem prejuízo de uma busca constante de compreensão própria e do próximo, para
não ferir outro valor fundamental de nosso ordenamento jurídico, qual seja: a
dignidade da pessoa humana, que deve ser observada em cada caso, devido a
singularidade de cada ser, inserido numa totalidade.
---
Publicado originalmente no Consultor Jurídico (Conjur) - (link)
27 de agosto de 2011.
Nenhum comentário:
Postar um comentário