DIREITO À PROPRIEDADE
Não é possível tratar do direito à propriedade sem abordar a
sua função social, bem como elementos que gravitam ao seu redor.
Por Nicholas Maciel Merlone
Quando falamos em direito à propriedade,
este salta à tela. Não é questão simples, pois envolve interesses sociais,
políticos e econômicos em jogo e em colisão. Por esse motivo, não deve ser
analisado simplesmente sob a ótica do CC/02. Pelo
contrário, requer uma leitura e apreciação não só por esse diploma legal, mas,
principalmente, a partir da CF/88, passando por
outras disciplinas e legislações, considerando aspectos fáticos e humanos. Não
é possível tratar do direito à propriedade sem abordar a sua função social, bem
como elementos que gravitam ao seu redor.
O art., 1º, caput, da CF/88, determina que o Brasil é um
Estado Democrático de Direito, em linhas gerais, o que significa ser guiado por
uma democracia e regido por leis. Além disso, o art., 5º, II e 37, caput,
acrescentam que nele as relações jurídicas se pautam pela legalidade.
Igualmente
o art. 1º, III, firma a dignidade da pessoa humana, como pressuposto
fundamental para o mínimo existencial na vida em sociedade. Já o art. 6º
exemplifica alguns direitos sociais, como a educação, a saúde, a alimentação, o
trabalho e, frise-se, a moradia. Porém, cumpre também lembrar que o seu art.
196, prevê a saúde como um direito de todos e dever do Estado e, do mesmo modo,
o art. 205 assegura a educação como um direito do povo. A lei orgânica do município de São Paulo,
por sua vez, em seu art. 235, prevê que "o Poder Municipal, objetivando a
integração social, manterá e regulamentará, na forma da lei, a existência dos
clubes desportivos municipais [...]".
Enquanto isso, nosso ordenamento jurídico, admite a
incorporação de Tratados e Convenções Internacionais, de modo que a Convenção
Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de San José da Costa Rica) foi por
ele assimilada.
Vale lembrar que seu art. 26, prescreve sobre o
desenvolvimento progressivo, anotando que os Estados-partes se comprometem a
conseguir progressivamente a plena efetividade dos direitos que decorrem das
normas econômicas, sociais e sobre educação, entre outras, na medida dos
recursos disponíveis, por meio legislativo ou por outros modos.
Ao mesmo tempo, seu art. 21, dispõe sobre o direito à
propriedade privada: "1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus
bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social".
Já no que compete a Constituição da República, o art. 5º,
XXII, estabelece que é garantido o direito de propriedade. Da mesma forma, em
seu inciso XXIII, há a previsão da função social da propriedade, igualmente,
prevista no Pacto de San José da Costa Rica, bem como em outros diplomas
legais, conforme veremos.
O art. 5º, § 1º, da CF/88, afirma que as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata.
Contudo, diante dos acontecimentos do mundo real, podemos nos perguntar se, de
fato, isso ocorre. Questão que exploraremos melhor adiante.
Por ora, cabe lembrarmos do art. 170, do mesmo texto
constitucional, que trata da ordem econômica, que se fundamenta: a) na
valorização do trabalho humano; e b) na livre iniciativa. Além de ter por fim:
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social,
observados, para o nosso objeto de análise, os princípios dos incisos: II -
propriedade privada; III - função social da propriedade.
Da leitura desse excerto constitucional, resta-nos clara
a inserção do direito à propriedade privada, bem como o necessário atendimento
à sua função social no contexto da ordem econômica.
Então, caminhamos ao art. 182, também da CF/88, que
prescreve que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, ocorre por diretrizes gerais fixadas em lei, e tem por
objetivo: a) ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade; e
b) garantir o bem- estar de seus habitantes.
Neste ponto, vale atentar para o disposto no art. 183, da
lei suprema. Está sedimentado como requisitos, quanto ao usucapião urbano, que
se deve: a) possuir como sua área urbana; b) de até 250m²; c) por cinco anos;
d) ininterruptamente e sem oposição; e) utilizando-a para sua moradia ou de sua
família; f) desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.
Além disso, conforme o art. 183, § 2º, "Esse direito
não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez", bem como em seu
§ 3º prevê-se que: "Os imóveis públicos não serão adquiridos por
usucapião". De modo que os imóveis e bens dos entes políticos federativos
(União, Estados, DF e Municípios) não se encontram sujeitos ao usucapião
especial urbano ou rural.
Como
dito, inicialmente, no estudo da questão, é necessária uma análise ampla, de
forma que, neste instante, recorreremos à lei 10.257/01, o
Estatuto da Cidade, que se faz imprescindível para a compreensão do tema.
Logo em seu art. 1º, parágrafo único, está elencado que o
Estatuto da Cidade firma normas de ordem pública e interesse social que regulam
o uso da propriedade urbana para o bem coletivo, da segurança e do bem-estar
dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental.
O seu art. 2º dispõe sobre o objetivo da política urbana,
qual seja: ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da
propriedade urbana, mediante diretrizes gerais, dentre as quais cumpre
destacar:
"I – garantia do direito a cidades sustentáveis,
entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à
infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao
lazer, para as presentes e futuras gerações;
II – gestão democrática por meio da participação da
população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade
na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de
desenvolvimento urbano;
III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada
e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao
interesse social;"
Igualmente, com fulcro no art. 3º, III compete à União:
"promover, por iniciativa própria e em conjunto com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, programas de construção de moradias e a melhoria das
condições habitacionais e de saneamento básico".
A análise de todos os dispositivos mencionados do
Estatuto da Cidade permite-nos concluir que visando o bem comum da
coletividade, do meio ambiente e da Cidade, para atender a função social da
propriedade, o governo deve agir articulada e coordenadamente nas três esferas
federativas, com o apoio da sociedade, por instrumentos de gestão democrática,
onde a busca pelo consenso deve prevalecer, em detrimento do conflito baseado
em argumentos desarrazoados e sem fundamentos plausíveis.
Destaque-se a necessidade de construção de moradias
populares, o que pode ser feito por todos os entes federativos em cooperação
entre si, bem como com a participação dos grupos sociais que habitarão as
moradias.
Tendo visto, assim, algumas disposições sobre a função
social da propriedade, por outro lado, vale apenas citar o art. 1.228, do
CC/02: "O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e
o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou
detenha", que não pode ser examinado isoladamente.
Voltando a apreciar a função social da propriedade e
questões atinentes, mencionamos agora a lei orgânica do município de São Paulo,
em seu art. 148, que traz o objetivo da política urbana do município, qual
seja: a) ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade, b)
propiciar a realização da função social da propriedade; e c) garantir o
bem-estar de seus habitantes.
Enquanto
isso, a lei 11.228/92, do
município de São Paulo, quando trata sobre obras e edificações, quanto aos
Direitos e Responsabilidades, dispõe: 2.2 - DO PROPRIETÁRIO: Considera-se
proprietário do imóvel a pessoa física ou jurídica, portadora do título de
propriedade registrado em Cartório de Registro Imobiliário; 2.3 - DO POSSUIDOR:
Considera-se possuidor a pessoa física ou jurídica, bem como seu sucessor a
qualquer título, que tenha de fato o exercício pleno ou não do direito de usar
o imóvel objeto da obra.
Assim, apesar da definição de proprietário, é preciso
estudá-la em conjunto com a CF/88. Da mesma forma, o possuidor, para
efetivamente caracterizar-se como tal, é preciso que tenha de fato o direito de
usar o imóvel, o que deve ser analisado, principalmente, também à luz da
Constituição. Com isso, por exemplo, não se justifica o uso de propriedade
pública.
Nossa Constituição Brasileira nos colocou sob a égide de
uma democracia, balisada por leis. O governo do povo, como último fim deste
regime de governo, talvez possa ser questionado quando falamos em propriedade.
O que devemos fazer é buscar conciliar o ideal democrático com a realidade política.
A dignidade humana e os direitos sociais, previstos em
nossa Lei Suprema, bem como em Tratados e Convenções Internacionais por nós
adotados, talvez possam contrapor-se ao direito à propriedade, em alguns casos,
uma vez que a sua função social deve ser observada.
Equacionar esses direitos, como dito inicialmente, não é
ofício fácil. Devemos considerá-los de forma abrangente e criteriosa. Devemos
igualmente lembrar que a Constituição é o seu norte, porém considerando outras
matérias.
Finalmente, devemos lembrar que é fundamental considerar
os aspectos fáticos e humanos, nesse quadro em movimento, onde as tintas que o
colorem devem ser escolhidas pensando não só no presente, como também no
futuro, já que uma população com moradia, saneamento básico, saúde, cultura,
lazer e educação contribui para o desenvolvimento do país. Para tanto, investir
cooperativamente na construção de habitações populares é um pressuposto para
isso, com tanto que o diálogo seja conduzido e o ordenamento jurídico
respeitado.
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Publicado originalmente no Migalhas. (link)
12 de maio de 2013.
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